para Elizabeth Sandoval

 

Erros, fracassos, falhas, deslizes, perdas, disfunções, malogros, descaminhos, desilusões, derrotas, bancarrotas, falências, quedas, colapsos, traições, descalabros, desajustes, faltas, naufrágios, decepções, e a lista vai longe. Há toda uma linguagem para chamar e imaginar o que não funciona. Deparamo-nos constantemente com ela. Pois não é esta a composição básica do dia-a-dia de nossos consultórios?

Somos feitos da matéria dos fracassos. E nossos fracassos não nos exoneram, não desistem de nós. São como nossos complexos, permanecendo conosco além do que gostaríamos, formando um lixo que, sem a possibilidade do descarte, devemos reciclar. Os fracassos são como o lixo, inconvenientes. Não sabemos o que fazer com eles, onde colocá-los, como aceitá-los. Então inventamos a ideia de que o fracasso é importante para nosso crescimento ou nosso desenvolvimento, de que o fracasso é importante para se ganhar algo mais lá na frente, a ideia de que precisamos ganhar sempre. Inventamos que eles são a correção da rota rumo à vitória e ao sucesso, maneiras de se aprender lições de vida que nos deixarão mais aptos a chegar onde queremos. O fracasso gera o sucesso.

Falando sério, fracassar é perder. E ficar na perda é ficar na alma. Senão, mascaramos contrafobicamente o fracasso, sua dor e seu trabalho. Perceber os fracassos é perceber os poderes imaginais que nos alcançam por meio deles. Esta última frase quer dizer que os fracassos revelam fantasias, e fantasias mostram a alma mais profunda. Os fracassos são, portanto, importantes neles mesmos — não como um caminho para outra coisa — porque neles encontramos necessidades e verdades que a razão pura desconhece. Neles, a consciência psicológica emerge. Isso é o mais difícil. Qualquer terapeuta sabe disso.

O fracasso é um tema tão desagradável, é tão incômodo (como também são incômodos os sonhos, não?), que no mais das vezes preferimos os mal-entendidos, as fofocas, as distorções, as inversões, as hipocrisias, as mentiras: quem é que gosta de falar em sobras, restos, entulhos, malogros, frustrações? Só na terapia damos essa chance aos fracassos, e olhe lá!

Somos feitos da matéria dos fracassos. Talvez, para nós, tudo tenha começado com Freud, que primeiro descobriu esta verdade para a psicologia com os lapsos linguísticos, os famosos slips of the tongue, o “ato falho”. O ato falho é um fracasso na comunicação que abre a fala da alma. Com Freud começou uma apreciação da arte de fracassar. Em nosso campo, essa apreciação passa por Jung (os experimentos de associação), por Rafael López-Pedraza (a ansiedade cultural), e vem até a tese de James Hillman de que a análise terapêutica vincula-se ao fracasso (ou seja, à fraqueza, à deficiência, ao insucesso, à falta), e a ideia do fracasso como um fator psíquico fundamental, pois com ele podemos escapar do unilateralismo de vitórias, conquistas e crescimento constantes e excessivos. O “curso errante” da alma foi extensivamente discutido por Hillman, em seu magistral Re-vendo a psicologia. A alma é o cavaleiro errante, que erra na vida e na terra. Talvez não tenhamos aprendido o bastante.

Cada ideia, cada fantasia, e cada sentimento e ação que temos no mundo define seu próprio sucesso e seu próprio fracasso. Do ponto de vista da alma, essas noções variam. Tudo depende de como imaginamos as coisas pois, como disse Bachelard, se a imaginação funciona, tudo funciona. Na alquimia, por exemplo, que é o modelo da psicologia junguiana mais profunda, tudo nasce do fracasso: putrefactio é a primeira operação. Esse é o princípio da obra, princípio como começo e como fundamento, quando algo entra em falência. Para a alquimia, tudo começa no fracasso: nigredo. É uma sábia lição, tirada evidentemente da observação da natureza e de como ela se transforma. A obra não começa enquanto algo não fracassa, não se desconstrói. O fracasso já é a obra.

A alma conhece o fracasso intimamente. Como disse Montaigne, a alma é proveitosamente servida pelo erro. Os erros estão a serviço da alma, não o contrário. Ela erra, e não precisa ser corrigida. É ela que nos corrige com seus erros e fracassos. Corrigir não é melhorar. Na vida psicológica, ganhar não é tudo.

 

—fevereiro/2016