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Um objeto presta testemunho de si mesmo na imagem que oferece, e sua profundidade está nas complexidades dessa imagem.
James Hillman

Abrigar, ordenar, proteger

Todos temos nossas gavetas. Não há uma vida sem gavetas, e elas estão por toda a parte. Há gavetas nos armários, nas cômodas, há gavetas na cozinha, na copa, no banheiro, gaveta de mesa, de escritório, de escrivaninha, de geladeira, de barbeiro, de necrotério, nos guarda-louças, gavetinha de criado-mudo, de aparador, de gabinete, de farmácia. Temos gavetas arrumadas (inclusive alfabeticamente), onde mora nossa solidão, e gavetas desarrumadas (inclusive pelos outros), onde mora nossa confusão. Cada uma tem sua função simbólica. O que está guardado nelas? Que surpresas elas nos guardam? E que revelações nos a-guardam dentro delas? De que forma elas nos olham, e o que somos quando elas nos guardam? Numa poética do espaço e no devaneio da alma, a gaveta, imagem de uma intimidade mais profunda, é um tema essencialmente bachelardiano.

Qual é a “metáfora gaveta”?

Para “entrarmos” nas gavetas, no tema das gavetas, procuraremos seu trajeto de imagem, tendo como guias os dois G’s franceses: Gaston Bachelard e Gilbert Durand. Gaston Bachelard — a cada leitura que fazemos de um volume de sua obra, o coração dispara. Mais ainda: o coração vai transitar a profundidade. E Gilbert Durand, seu discípulo antropólogo, nos entrega em sua obra ao dinamismo de um “jardim das imagens”, sua arquetipologia geral. E, claro, o J americano, James Hillman, mestre e mentor desta psicologia arquetípica.

Antes de tudo, a gaveta nos permite guardar, ensina que podemos guardar as coisas. Então já estamos aprendendo com os objetos do mundo. Já que todo gesto procura seu utensílio, como defende Durand, podemos dizer que o gesto de guardar procura a gaveta, que então oferece ao gesto de guardar sua mais perfeita realização. Guardar é o ser das gavetas. Não se guarda nada melhor, mais inteiramente, do que numa gaveta. É um gesto completo. A bolsa, o bolso, o envelope, a carteira, até mesmo o armazém, o almoxarifado e os galpões não se equiparam à gaveta em sua perfeição de abrigo. Mas guardar — verbo com tantos sentidos em português, um verdadeiro super-verbo que diz muitas ações — nem sempre é apenas abrigar, ordenar, proteger, quando então a gaveta exerce somente a função de conter, ou seja, de abrigar fechando. Guardar também significa olhar, mirar, trazer para a observação, para a mirada. Em francês, por exemplo, garder diz vigiar, guardar, e regarder significa olhar; e no italiano, guardare diz tanto olhar, ver, quanto guardar, conservar. O que une esses dois gestos, guardar e olhar? O que têm em comum?

Guardar coisas é também guardar-se. Quem guarda, ama guardar. Guardar é um exercício de claustrofilia. Guardar alguma coisa numa gaveta é o gesto de fazer com que algo se retire, momentânea ou definitivamente, da vida. Simboliza ruptura. A gaveta apresenta uma fantasia de retiro, um desejo de ruptura, de afastamento, de separação do mundo, de anacorese. Todo pertence de gaveta é um anacoreta. Todo retiro é um ato de ruptura. Roland Barthes testemunha isso que ele chama de “inclinação ao retiro”, presente nas almas mais sensíveis. Assim, engavetamos alguém, uma memória, um objeto de valor afetivo alegre ou doloroso, um plano, um sonho, um malogro, todo um passado.

Na topofilia bachelardiana de A poética do espaço, figurando entre o que ali são chamados de “espaços amados”, a gaveta é sentida antes de tudo como um lugar, e portanto registra, no mundo do homem, uma topografia. Que topos é esse? Ora, a gaveta é uma imagem encolhida da casa. Para Bachelard, junto aos armários e cofres, está a gaveta como a “casa das coisas”. Sua expressão transforma as gavetas imediatamente num lar. Pois as coisas também experimentam, como nós, a necessidade da casa, necessidade de estarmos abrigados, contidos, de pertencermos a um topos, um locus, um lugar — que é a necessidade do lar. Do ponto de vista afetivo mais profundo, não existe vida sem lar. Tudo o que está cheio de alma sabe disso. Assim, Bachelard nos dá uma pista importante: na gaveta, a função de guardar confunde-se e complica-se com a função de habitar. Habitar é estar guardado, estar guardado é habitar. Só guarda bem, só conhece a poética e a psicologia da gaveta, quem sabe habitar.

Gaveta: a casa das coisas.

 

Dentro

A gaveta, toda imagem-gaveta, lança-nos no dinamismo psíquico expresso pela palavra “dentro” e pela dialética de continente e conteúdo, ambos tão importantes para a psicologia profunda. Os continentes nos apresentam as tecnologias do duro, ou fixo, enquanto que o conteúdo geralmente nos envolve com as realidades moles, ou fluidas. Assim, fluindo e fixando, fixando e fluindo, continente e conteúdo se pertencem, e formulam para nós, em nossas vidas, o constante solve et coagula alquímico.

Os feixes de analogias das gavetas como interioridade, como a dimensão do “dentro”, são bem definidos. Cada um tem seu valor psicológico. É possível percebê-los bem. Num deles, a gaveta é análoga ao vaso, à panela, ao cofre, ao caixão, à bolsa, à sacola, ao cesto, ao pote, à tijela, à toca. É quando a gaveta é gesto que fecha e guarda, e isto para preservar ou esconder, para manter ou esquecer, maturar ou apodrecer. São analogias de valor feminino. Estão ligadas, em última instância, ao ventre e seus símbolos. É a gaveta da alma, gaveta como metáfora da alma: fechada, vagarosa, profunda. A gaveta da alma guarda, e porque guarda, aprofunda. Guardar é aprofundar. Então temos gavetas bem fechadas.

Outro feixe de analogias, este de valor masculino, leva-nos à caixa, ao envelope, ao arquivo, ao armazém, à prateleira, ao fichário, às pastas, aos verbetes. Estes também guardam, mas de outra forma, pois mais que guardar, organizam, categorizam, catalogam, ordenam. É a gaveta que serve ao espírito, que autovaloriza seu sentido de utensílio, de logos, de logística, ou seja, onde as coisas estão para que tenhamos acesso lógico a elas. Para que as possamos compreender. Guardar é compreender. Então temos gavetas bem abertas.

Gavetas: países das coisas.

 

Intimidade

Para descobrir o mistério das gavetas, na noite profunda das gavetas, é preciso antes compreender inteiramente que a gaveta é um espaço de intimidade, pois é onde vai parar o que é íntimo.  O que é íntimo para nas gavetas. Nas gavetas temos a parada das intimidades. Lá, a imaginação percebe o que é íntimo. Mas… o que é realmente o íntimo? Qual a natureza da intimidade?

Gavetas são sonhos de intimidade. A gaveta como utensílio continente, como tecnologia dura, tem lugar de destaque entre as images da intimidade, tanto quanto as taças, os vasos e os cestos. Bachelard, por sua vez, alinha as gavetas a dimensões maiores e ainda mais duras: aos cofres, escrivaninhas e armários, chamando-os de “verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta”. Sem a gaveta, diz ele, nossa vida psíquica “não teria um modelo de intimidade”. E é justamente a partir dessa compreensão que um estudo apurado das imagens de gaveta passa a interessar a psicologia profunda e a psicoterapia analítica, pois não é à investigação da intimidade e ao conhecimento da vida secreta que estas estão principalmente dedicadas? Podemos então falar, à maneira de Bachelard, num “complexo da gaveta” como a coleção de imagens, memórias e ideias no núcleo de nossas experiências de intimidade.

Criar intimidade é uma das potências da alma. Na gaveta, em sua metáfora, começa e termina a análise da intimidade: a gaveta e seus mitos. Uma mitologia das gavetas começa quando podemos utilizar sua imagem para uma compreensão íntima, uma compreensão da vida íntima. A gaveta então é como o mito. O poder mítico das gavetas é que elas dão conta de uma narrativa sobre o aberto e o fechado. Nisso, como o mito, elas alimentam a imaginação, criam histórias.

Para se compreender as gavetas como a imagem mais potente da intimidade, é preciso perceber principalmente duas repartições simbólicas. Por um lado, incidem sobre as gavetas as dominantes inconscientes de acolhimento, guarida, aconchego, aninhamento: é a rota simbólica que desemboca no ventre. Intimidade como conforto. Por outro lado, nelas incidem também as dominantes de repouso, refúgio, reparo: rota que dá no vaso. Intimidade como retiro. Quando algo entra numa gaveta, sente tudo isso. Essas são chaves imaginais da gaveta. A gaveta ora é uma imagem estendida do ventre, ora uma imagem estendida do vaso.

Esses feixes de imagens íntimas alinham as gavetas às profundidades telúricas, ao túmulo, à noite, às trevas, à mãe terrível, ao cárcere, à cabana isolada na floresta. O trajeto psicológico mais profundo do imaginário da intimidade retorna a gaveta à caverna, a caverna ao ventre, e o ventre à mãe: e o que há de mais íntimo em nós do que a mãe, nossa origem? O analista da intimidade fará esse percurso que ele entende como uma descida, pois a intimidade é quase sempre sentida como uma descida, um aprofundamento, um mergulho. Ou… uma queda. A intimidade, toda intimidade é vertiginosa. Vai ao fundo, quer o fundo, é abismo, é segredo e mistério.

Sentida como o destino dos segredos mais íntimos, a gaveta nos apresenta à vertigem do íntimo, ou ao íntimo como vertigem — o que faz deste um tema também borgiano: gavetas dentro de gavetas, dentro de gavetas, como acontece também com prateleiras, bibliotecas, catálogos, listas, labirintos, enciclopédias. A metáfora das gavetas é, primariamente, a metáfora das camadas de sentido. E, nessa medida, também a metáfora de um mundo engavetado, mundo desse nosso tempo classificado e repartido, mundo de tribos, estilos, confrarias, raças, cores, sexualidades, atitudes, filiações, identidades, comportamentos, alinhamentos, categorias — cada um na sua: a que grupo pertenço, a que grupo pertencer? Qual é, onde está minha gaveta?

Gavetas: o coração das coisas.

 

Seguimentos

Procuraremos agora pelos sinônimos psicológicos da gaveta. Vejamos alguns deles, para que se proponha por fim uma verdadeira e sincera psicologia das gavetas.

Como túmulo, a gaveta encerra as coisas, ou seja, guarda terminando. Porque não queremos mais saber de alguma coisa, nós a engavetamos. Nessa rota, algo vai à gaveta porque não está ainda no ponto de destinar-se ao lixo, à lixeira, aos abismos insondáveis do descarte. O lixo é, naturalmente, um estágio no tempo muito diferente do da gaveta. Uma gaveta nos impõe então a intimidade da morte, indicando que algo morreu dentro de nós e, sem vida e sem dúvida, passa a viver na região dos esquecimentos. A gaveta é um elogio da morte.

E por falar em esquecer e lembrar, para Bachelard as coisas inesquecíveis estão no cofre; isso nos permite dizer que na gaveta, ao contrário, estão as coisas que queremos esquecer, ou que querem ser esquecidas. Nesse nível, se o cofre é a memória, a gaveta é a tentativa de nos livrarmos da memória. Muitas coisas entram nas gavetas para serem definitivamente esquecidas, para deixarem de ser lembradas. E que alívio para a alma, para as almas livres, livrar-se da memória! Então, a própria memória está livre para ser aquilo que ela de fato parece ser: uma invenção, uma criação da alma para narrar-se. A psicodinâmica das gavetas não nos envolve com memória, pois a gaveta é, pensando bem, o ultrapassamento da memória. A gaveta é como o Hades, algo como um mundo das trevas, onde as coisas não estão apenas esquecidas, mas estão, na verdade, além do esquecimento, além de lethe (esquecimento, encobrimento), na outra margem, num reino do Além, ocultas, nem mortas nem vivas, mas almas. Nesse ponto, ainda resta, para nós da psicologia, refletir sobre as relações entre esquecimento e recalque — recalque no sentido psicanalítico de repressão, ou seja, um esquecimento especializado.

Como ninho, a gaveta acolhe e protege. É calor, calor que nutre e mantém vivo. Abarca o que nela encontrou seu lar. É quando guardamos as coisas com carinho, e onde mostramos o carinho pelas coisas. Ali, as coisas estão arrumadas, bem dispostas, ou estão jogadas, indispostas. A gaveta que acolhe, a gaveta-ninho, está nutrindo o que é projeto ou o que é reminiscência, futuro ou passado. Então, nas gavetas repousam tanto os projetos adormecidos (endereçados a um tempo em que se poderá talvez conhecê-los), as visões, as ânsias de futuro, as ansiedades, as pre-ocupações, as projeções, os mapas de minas, assim como também os bilhetes, os papéis melancólicos, as cartas, as fotografias, os pequenos objetos ridículos, uma pistola, os cadernos de sonhos, os diários, as roupas velhas que são, afinal, nossa única conexão concreta com o passado. Passado e futuro: acolher esses tempos, como o faz a gaveta, é torná-los presentes.

Nesse nível mais aquecido, a gaveta também é forno, uma retorta alquímica, de onde algo, projeto ou sonho, depois de longamente cozinhado, pode emergir, pode florescer. Nesse caso, abrir gavetas é estarmos prontos para as viagens das lembranças ou para as viagens dos desejos, as viagens do que fomos e as viagens do que ainda queremos ser. Assim, uma gaveta é sempre uma partida, soltar-se do cais, deixar-se ir, convite à viagem interior, é barco, saveiro, nave. E, como em toda embarcação, navegamos, ou melhor, sonhamos. Durand afirma que o vaso é “o diminutivo artificial do navio.” Para nós, a gaveta é sensivelmente o diminutivo artificial do barco.

Como arquivo ou como fichário, a gaveta guarda classificando, ordenando, catalogando. O verbete, por exemplo — que é a gaveta da enciclopédia ou dos dicionários — é uma gaveta onde algo se define, e está definitivamente guardado, categorizado, onde cabe só aquilo. É uma gaveta-foco, matriz do funcionamento de nossos atuais computadores pessoais, que imaginam nossa experiência da informação organizada em pastas, arquivos, diretórios, documentos. Essas gavetas de escritórios e escrivaninhas refletem a necessidade de armazenamento e a vontade de organização da alma, de sonhar um mundo ordenado, tranquilo, justo, mundo que não ameaça, mundo controlado, o sonho de uma vida plana, fácil, um sonho de planície. Trata-se da fantasia de por nossa vida em ordem. E que alegria quando tudo ocupa o seu lugar, quando tudo se encaixa! Quantas almas regozijam num mundo ordenado!

Como vaso, a gaveta guarda os segredos, a vida secreta da alma, o que não queremos, não podemos e não iremos mostrar, muitas vezes nem para nós mesmos. É esconderijo. É toca. Zona mais recôndita da vida íntima. É a gaveta com fechadura, chave ou tranca. Gaveta fechada, que tranca o trânsito natural entre dentro e fora, aberto e fechado, ir e vir, trancando a circulação dos conteúdos nas vias afetivas, gaveta tranca-ruas. Aqui, a gaveta é tanto a região psíquica da vergonha ou da inibição, quanto do tesouro e da jóia, da preciosidade, daquilo que é mais valorizado e que precisa ser mantido sob proteção. Nesse nível, as coisas estão cerradas, escondidas, apartadas da vista e, tantas vezes, da consciência. Interditadas, interditas, ou protegidas, defendidas. Algo está “bem engavetado.”

O trajeto psicológico da gaveta dirige-se, afinal, para aquela que é, dentre todas as gavetas, a mais preciosa, em potência metafórica e como imagem forte na base de nossa relação com o mundo, a gaveta do coração — onde estão guardadas as melhores e as piores emoções, as lembranças, os temores, os sonhos, as aspirações, os rancores, as histórias, as frustrações, as imagens e, mais que tudo, onde está guardado o próprio ritmo de nossa vida, a batida elétrica que nos mantém. No coração, podemos encontrar a dialética corrediça de aberto e fechado, de sístole e diástole, que toda gaveta nos traz. Pois toda a gaveta nos envolve, afinal, com aberturas e fechamentos. Os movimentos de fechamento e abertura, fluxo e refluxo que o ritmo cardíaco nos impõe, encontra nas gavetas a sua mais perfeita tradução. Assim, compreendemos que o coração apresenta-nos constantes exemplos de reciprocidades. Que possamos apanhá-los perto do coração, nossa maior gaveta.

Pedra Grande
agosto/2014